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Por Airton Vieira*
Quando Deus fala de dentro do redemoinho, ele pode também falar no deserto.
(Chesterton)
Dois esclarecimentos necessários
Caso esteja chegando à segunda parte deste artigo sem ter passado pela “porta do aprisco” (parte I), sugiro retomá-la antes de seguir com a leitura, para não acontecer do leitor correr o risco de se tornar um “salteador” entrando pela porta dos fundos.
Apesar de compreensivelmente áridas, as linhas abaixo não são movidas por fatalismo ou pessimismo, categorias psicológicas, elas pretendem auxiliar a que o alimento ingerido seja amargo na boca, mas doce no ventre, não o contrário. Daí que sua motivação essencial seja a esperança teologal.
Um preâmbulo importante
Ouve-se dizer que a santa que mais salva almas é a “Santa Ignorância”. Das gêmeas, naturalmente a “Invencível”[1]. O chiste possui natural relação com a justiça divina, cuja cobrança é proporcional à medida concedida[2]. Sob a ótica da fé, por exemplo, apesar dos compreensíveis sentimentos de dor e tristeza, todos os que perdessem um ente amado antes do uso da razão (ou então que nasçam e vivam em situação de privação deste uso), estando estes batizados[3], aqueles deveriam ser muito contentes e agradecidos. O mesmo vale, em menor grau, aos familiares dos que foram privados, juntamente deste uso, também da graça do batismo. A razão foi revelada há alguns séculos por Jesus Cristo a uma santa monja sueca por nome Brígida, que antes de ser religiosa foi mãe de 8 filhos dos quais dois lhe foram levados ainda na infância[4]:
Devido ao meu grande amor, eu dou o reino dos céus a todos os batizados que morrem antes de atingirem a idade do discernimento. Como está escrito: É do agrado do meu Pai conceder o Reino dos Céus a tais como estes. Devido ao meu terno amor, Eu mostro misericórdia até mesmo às crianças dos pagãos [as não batizadas]. Se qualquer um deles morre antes de atingir a idade do discernimento, eles não podem me conhecer face a face, e vão para um lugar que não é permitido que se saiba, mas onde eles viverão sem sofrimento.
Isto significa, em conformidade com a doutrina católica, no primeiro caso que a certeza e garantia da salvação é de 100%, e no segundo, a do que chamamos o Limbo das Crianças, onde também os que para lá se destinam, embora não desfrutem do Céu, escapam ao fogo eterno, numa eternidade “sem sofrimento”. E ambos os casos sem “escalas” no Purgatório. Como amar é querer o bem do outro, e a salvação da alma é o maior bem que poderia se anelar, esta é uma verdade que alenta ao tempo que faz ver quão justo é a Justiça.
Entretanto, também por justiça, isso não se aplica a todos, tampouco à maioria...
O Deserto
O deserto se caracteriza como um dos principais locus bíblicos. São mais de 400 referências em toda a Sagrada Escritura, onde os simbolismos abundam. Um dos maiores, ao meu ver, é o de sua nudez. Espanta-me a simples consideração de seu pó como a veste que esconde a exuberante e soberba natureza embaixo, como outrora o fez esta cúmplice com o soberbo e desnudo pó de Adão (cf. Gn 3,6-8). Não é difícil assim que o homem, diante do “nada” desértico que de dia lhe torra os miolos e de noite lhe congela os ossos, não queira ardentemente refrescar-se de todo supérfluo e aquecer-se do essencial, na sensata consideração de que “tudo é vaidade e vento que passa” (Ecle 2,17), que por isso “o essencial é invisível aos olhos” (Saint-Exupéry), o que comprova que “só Deus basta” (S. Teresa de Jesus).
De tantos e sobejantes exemplos de “santos do deserto”, o da ex prostituta Maria do Egito, também Maria Egípcia ou Egipcíaca (344-421), é bastante singular. Ainda na flor da juventude, coberta dos ornamentos de sua devassidão, foi proscrita de um templo sagrado que sequer a permitiu passar de seu umbral. O inusitado foi que o impedimento não se deu “por mãos de homem”: foi barrada por um Anjo. Passado o espanto, entendeu que deveria despir-se de tudo o que não fosse o Criador, e apenas para Ele. Terminou seus dias no deserto, onde após cruéis e heroicas batalhas contra “o sangue, a carne e os dominadores deste mundo tenebroso”[5], ornada agora apenas de seus cabelos que já chegavam aos pés, foi servida por anjos e santos.
Dois milênios antes vagava também pelo deserto uma sua conterrânea, levada não por sua luxúria, mas por sua soberba. O relato de sobremodo interessa, pois toca um dos “cernes da questão” (grifos meus):
E, como Abrão anuísse aos seus rogos, tomou Agar egípcia, sua escrava... e deu-a por mulher a seu marido. Porém, ela, vendo que tinha concebido, desprezou sua senhora. E Sarai disse a Abrão: Tu tratas-me dum modo injusto; eu dei-te a minha escrava por mulher, e ela, vendo que concebeu, despreza-me; o Senhor seja juiz entre mim e ti. E Abrão respondeu-lhe, dizendo: Eis que a tua escrava está em teu poder, usa dela como te aprouver. Como Sarai, pois, a maltratasse, fugiu. E, tendo-a o anjo do Senhor achado no deserto... disse-lhe: Agar, escrava de Sarai, donde vens? e para onde vais? E ela respondeu: Fujo da face de Sarai, minha senhora. E o anjo do Senhor disse-lhe: Volta para a tua senhora, e humilha-te debaixo da sua mão[6].
Embora encante a ideia de explorar as analogias do texto com relação à Virgem Maria, a “escrava do Senhor” que se tornou Senhora[7] e Mãe (nova Eva) da escrava humanidade, que por sua condição vive fugindo da face desta Senhora por maltratar seus pecados com avisos e advertências, e fugidia, vagando pelos desertos, recebe dos anjos do Senhor ordens de voltar, humilhada, para “debaixo da sua mão”... o espaço não permite. Contudo, feito o registro, podemos extrair de seu interior outros sumos.
Interessante notar que Agar, a exemplo do que se fez antes e seguiremos fazendo até o fim, responde ao Anjo pela metade. Ela não mente, omite. Esta omissão, podemos intuir tanto por sua resposta quanto pela ordem angélica, carrega um misto de vergonha, soberba e vingança. Com ela oculta o leitmotiv de sua evasão “da face de Sarai”, ao tempo em que semeia dúvidas com relação à pessoa de sua senhora. Mas o Anjo, como Deus, não se deixa enganar: ele conhece as intenções do homem.
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Na primeira parte mencionei uma serpente rasteira que circula pelas cidades hodiernas inoculando seu sêmen peçonhento nos ventres humanos, o neopelagianismo. Ao ser picado por ele, o homem, este escravo do pecado, ao ver que concebe, passa a desprezar o seu Senhor, na leda consideração de ser o fim e artífice de todas as coisas. De um pedido de oração atendido à elaboração da mais alta tecnologia, crê que é o único, se não o maior responsável, o que o leva a perambular obcecado por reconhecimento, elogios e aplausos, quando não fama, dinheiro e poder. Isso, ainda que sutil e camufladamente. Esquece-se, e cada vez mais, que após cada realização bem sucedida ou mesmo uma boa ação deveria dizer, de cor: “Obrigado, Senhor, por conceder que teu servo inútil tenha feito o que deveria” (cf. Lc 17,7-10). Mas a realidade é outra, o que explica os milhares que, famintos de atenção, curtidas e seguidores (o “pão”), passam a protagonizar freneticamente bizarros espetáculos nos palcos internéticos franqueados a seus talentosos e inteligentes devaneios, verborreias e macaquices (o “circo”). Ocorre que sem um “dono de circo” que lhes proporcione os meios, “porque eles foram-me dados, e eu dou-os a quem me parece” (Lc 4,6), isto é impossível. E não me refiro somente aos que pactuam com o demônio “de papel passado”, nem os que, como já disse em algum lugar, vivem revolteando as cabeças como as corujas ou a Linda Blair. Porque o Santo de Pietrelcina já avisava: “il diavolo è molto astuto"; não por acaso, e a contragosto do teólogo Küng - que agora sabe; e que Deus o tenha apesar de seus pesares -, o inferno está cheio. Também de bem intencionados. Basta lembrar, preferencialmente “com temor e tremor”, outro aviso: “Castigo o meu corpo, e o reduzo à escravidão, para que não suceda que, tendo pregado aos outros, eu mesmo venha a ser reprovado” (1 Cor 9,27).
Do que falam estas coisas e por que as relaciono com o deserto e o Aviso?
Elas falam, por exemplo, disto: “Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome, e em teu nome expelimos os demônios, e em teu nome fizemos muitos milagres? E então eu lhes direi bem alto: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que obrais a iniquidade”. E por que Jesus Cristo, puro amor, faria algo assim com quem tanto “fez coisas por Deus”, “trabalhou para Deus”? Porque “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos… que tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e tivesse toda a fé, até ao ponto de transportar montes… E, ainda que distribuísse todos os meus bens no sustento dos pobres, e entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, nada me aproveita” (1 Cor 13,1-3). Sem esquecer, como ensinou o Santo Padre, que: “Só na verdade é que a caridade refulge e pode ser autenticamente vivida”[8].
O deserto, sob qualquer forma, carrega, como diz Chesterton, a capacidade de pôr o homem diante da verdade, também sobre si mesmo, pois em seu silêncio Deus fala. É o que vemos na escolha de Cristo pelo deserto, após o batismo e antes de sua vida pública, ensinando que as ações, o uso dos dons, talentos, inteligência, o “saber de onde vem e para onde vai”, passa pelo reconhecimento do nosso nada. Não existíamos e viemos, ex nihilo, e naturalmente não por virtude própria. Mas também não por acaso, para o caso pensarmos em ceder às “tentações do deserto”.
Há um lugar, além do Criador, onde, mesmo ocultos do mundo, não há como se esconder. Onde, enganando o mundo, permanecemos nus. É o que veremos na terceira e última parte deste artigo.
(continua…)
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* Responsável pelo blog Katejon. Tradutor de “O fim dos tempos e sete autores modernos”, do Pe. Alfredo Sáenz, S.J, “Mãe de Deus e nossa Mãe” e “Garabandal: chegou a hora!”, de Santiago Lanús, dentre outros. Filho de Deus e soldado de Cristo.
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[1] Referência às duas espécies de ignorância, assim denominadas “vencível” e “invencível”. A segunda, ao contrário da outra, ocorre quando não se possui os meios para se chegar à verdade, seja por uma deficiência mental, alcance intelectual ou impossibilidade de se obter os meios necessários, por exemplo, o acesso às informações e o conhecimento necessários.
[2] Cf. 12,42-48; Mt 25,14-30.
[3] Ainda que em batismo de desejo ou de sangue, como no caso dos Santos Inocentes – cf. Mt 2,16-18.
[4] Citado em O Aborto e o Limbo das Crianças. Neste artigo também são dadas as razões para a doutrina do Limbo.
[5] Cf. Ef 6,12-18.
[6] Gên 16,1-9.
[7] Um das etimologias para nome Maria é “Senhora”.
[8] Carta Encíclica Caritas in veritate.
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